segunda-feira, 17 de março de 2014

Ser pagã por Cláudia Oliveira: O tempo, a alma e as gentes



Sou uma mulher. Sou pagã. Isto não define o que sou ou como sou, faz parte de mim. Se as denominações fossem diferentes, continuaria sendo mulher e pagã, o nome é que mudava. E há quem queria dar um nome ao que é, para saber se é alguém, e nem sabe quem é. E nós precisamos de saber quem somos.

Sou uma mulher pagã de mãos dadas com as minhas raízes, com o meu folclore. Foi onde cresci que aprendi a amar a terra, a agradecer o terno toque do vento, a beber água fresca, a aquecer as mãos à lareira, a escutar o Mundo. O mundo das plantas, dos animais, dos cogumelos, das pedras, o mundo sem a nossa poluição. Foi o crescer onde cresci que nunca me deixou perder fé na humanidade, porque aquelas gentes, de outros tempos, de almas velhas, ainda sabem embalar as pedras, viver do nada, cuidar de tudo. Aquelas gentes são o contra-peso do mundanismo.

Cresci numa aldeia em que as bruxas, ou bruxos, eram as pessoas que rogavam pragas. As curandeiras e as benzedeiras queriam-se bem e fortes, porque, afinal de contas, ir arrancar umas ervas ao quintal ou ser tratado em casa, era sempre mais barato que ir ao médico e de seguida à farmácia buscar um unguento qualquer, com exactamente o mesmo efeito. Lá, saber o que serve para tratar o quê, era tão importante como a ninhada de gatos que acabou de nascer, ou a terra que tem de ser bem cuidada. Foi num ambiente cristão, mas místico, de gentes que seguiam as luas e o sol que fui aprendendo a amar a Natura, a viver dela e com ela. Ainda hoje agradeço ter estado sempre em contacto com o saber ético, cívico e moral de quem me educou, pois faz parte da minha identidade.

Sentada no banco, na capela da aldeia, nunca soube estar quieta. Silenciosa, sim, mas perscrutava toda a gente. Perguntava-me porque estavam todos com cara séria a ouvir uma pessoa a falar durante uma hora, com um dedo apontado a quem ouvia. Perguntava-me porque não faziam nada senão balbuciar uma dúzia palavras, ficar com dores nos joelhos e pedir perdão todas as semanas. Tinham feito algo assim tão mau? Repetitivamente? "Então não aprenderam nada!", pensava eu. Não entendia nada daquilo. Nem porque é que as pessoas tinham de ir à missa à igreja, se Deus estava em todo lado. Não era para mim, não me fazia luzir a alma. Foi ali que aprendi a ser tolerante.

Hoje, para mim, a Natureza e o meu corpo são o meu templo, mas também vou à procura de um local onde celebrar em determinadas alturas. Também fico a escutar, introspectiva, alguém com um dedo apontado a mim. Eu. Mas tento ultrapassar-me, melhorar, não repetir os mesmos erros. Por vezes também fico com dores nos joelhos, pois por baixo deles há pedras, folhas, galhos. Também balbucio meia dúzia de palavras aos ciclos e fertilidade da Mãe-Terra, talvez mais, talvez nem as pronuncie, ou então canto-as.

Não sou pessoa de andar a dizer a toda a gente que sou pagã. O meu círculo sabe-o, logo sabe quem é preciso saber. E por vezes falamos de religião e paganismo, mas é frequente ser apenas curiosidade sobre como podemos ter opiniões tão discrepantes ou similares, não porque querem que eu lhes explique. Até porque não sei explicar, apenas mostrar.

Não sei explicar o que é a religião. Não sei explicar o que é ser pagã, ser quem ouve os ecos da terra e lhe sabe responder. Também não sei explicar o que é amar, mas amo. 

Ao longo do quase-quarto-de-século que tenho, já vivi em localidades que diferem muito no que toca a valores. Se no Algarve as pessoas queriam aproveitar a vida desde cedo com cada coisa a seu tempo, aqui no Minho tudo gira muito mais em roda do tema Família. E seja em terras de Carpe Diem ou de Família, onde quer que vá, ouço cada vez mais gente a bradar não ter religião. Mas onde quer que vá, encontro sempre alguém à procura do paganismo. Encontro mulheres muitas vezes à procura do contacto com o sagrado feminino, mulheres que perderam a voz numa batalha lenta e dolorosa contra elas próprias ou outrém. Encontro homens que se lembraram que vivemos em grupo. Que para cada ligação há dois ou mais elos. Encontro crianças que encontraram na natureza a SUA natureza.

Como cidadã e religiosa activa, tenho receio dos prevaricadores com que estas pessoas se poderão cruzar, receio que possam corromper os ideais da espiritualidade de quem está perdido, destruindo a concretude dos valores de gente que está praticamente indefesa. Receio que possam enredar por um caminho fácil, com palavras fáceis, porque neste século XXI tudo está destapado, mas tudo é profundo, e chegar fundo é difícil. Chegar fundo dentro de nós é mais difícil ainda. “Locais sagrados são locais obscuros. É vida e força que ganhamos neles, não conhecimento e palavras. A sabedoria sagrada não é translúcida e fina como a água, mas espessa e escura como o sangue.”(C.S. Lewis in Till we have faces) E, portanto, é importante que quem procura ser melhor saiba procurar, e a sociedade, independentemente da religião, saiba ajudar. 

Sinto que com o tempo, as pessoas, como sociedade tentando ser lógicas, colocam a religião num contentor, esquecido num canto; até que um dia, por necessidade, porque finalmente já não sabem onde se abrigar, procuram de novo os pedaços de si que um dia resolveram esquecer e agora... precisam de se religar.


Cláudia

Imagem retirada da net: http://wp.patheos.com.s3.amazonaws.com/blogs/agora/files/2013/03/066.jpg
C.S. Lewis (1956) ,Till we have faces -citação original em Inglês

quarta-feira, 12 de março de 2014

Ser Pagã por Marina Ferraz: A minha voz



Considerando o poder socializador e a influência do contexto sociocultural, Simone de Beauvoir (1975) afirmava que "ninguém nasce mulher, torna-se mulher". No que respeita à religião, a minha experiência pessoal, enquanto pagã, leva-me a afirmar o oposto: "ninguém se torna pagão, nasce-se pagão". O que me leva a dizer isto é, talvez, o melhor ponto de partida para explicar a minha visão sobre a religião.
Nasci no seio de uma família católica. Algumas das pessoas que me criaram levam a religiosidade a sério e cumprem os rituais. Outras assumem-se como "não praticantes". Foram todas estas pessoas, no entanto, que me falaram de deus e me tornaram aluna de um colégio católico, entre os três e os catorze anos. Cresci dentro da ideologia cristã e não julgo que ela seja errada ou que tenha algo de mal. Simplesmente, nunca me revi nela. Nunca me revi nos seus ritos, na sua religiosidade. A minha alma não encontrava conforto naqueles chãos.
É, no entanto, neste contexto de socialização, que construí a minha personalidade, a minha identidade e a minha forma de ver a vida e a religião. Considero isto importante para explicar a forma como, relutantemente, assumi (a mim própria e aos outros) que a minha crença não era a mesma que me tinham apresentado como "correta" durante toda a vida.
Mas cheguei lá. Cheguei lá, na maior parte do tempo sozinha. Cheguei lá, depois, pelas mãos de alguém que me disse que não estava só nas minhas crenças. É uma longa história. Uma boa história. Mas uma história para outro momento...

Hoje, quero falar sobre religião. Sobre a forma como a vejo e a sinto. Sobre a forma como ela está em mim e eu nela.
Uma das frases que mais me marcou sobre religião foi-me dita por uma pagã (também autora das páginas deste blogue): "Uma pessoa até pode fazer de uma panela uma religião, desde que isso a torne uma pessoa melhor". Ri. Sorri. E aceitei a verdade da frase com carinho. É assim que também eu vejo a religião. Acho que a crença é algo que vem de dentro. Acho que a fé é algo que deve incentivar-nos a lutar, a cada momento, por sermos melhores, para nós mesmos e para os outros. E acho que, independentemente da religião professada, é com base na tolerância, no respeito mútuo e na luta por um mundo melhor (que começa dentro de nós) que se pode ter um mundo onde mil crenças possam ser chamadas de fé, no singular.
É uma utopia e eu sei-o. Sei que a religião é tabu. Sei que as pessoas não gostam de falar sobre esta temática. Sei que a religião gera discórdia, discussão... que perturba e incomoda. Sei que já gerou muitos conflitos, muitas guerras... Gera questões: Como falar se as pessoas não querem ouvir? Como explicar se as elas não querem saber? Felizmente alguns levantam-se e falam ainda assim...
Durante muito tempo, calei. Calei-me. Primeiro, não disse a mim mesma. Depois não disse aos outros. Finalmente entendi que, enquanto me calasse, não seria apenas eu mas toda uma comunidade a não ter voz. Quis dar-lhe voz, por pequena que fosse. Hoje falo. Escrevo. Às vezes a medo, é verdade. Mas falo. Falo porque tenho uma voz e ouço a Voz. Explico que sou pagã. Digo que sou politeísta. Que sou panteísta. Que acredito que a divindade tem algo de feminino. Que acredito que a Natureza é sagrada. Que os meus santuários tomam a forma de praias, florestas... Explico mas nem sempre me faço entender. Sinto muitas vezes incompreensão, intolerância. Mas trago ao pescoço a minha essência e no coração a minha forma de sentir a fé. Trago a voz para explicar a quem quiser ouvir-me e a mente aberta para aceitar quem tiver algo a explicar-me, ainda que seja diferente. No coração, trago o desejo de que um dia possamos todos respeitar-nos como irmãos. Nos lábios, uma prece: assim seja... e assim se faça. 




BEAUVOIR, S. (1975). O segundo sexo. Amadora: Livraria Bertrand. Vol. I e II

sábado, 8 de março de 2014

Ser Religiosa por Mariana Vital: Em nome da religião



Trazer o tema religioso para uma conversa é um desafio. Um desafio que costuma ser abordado em tom de paródia mas que desperta a desconfiança se alvo de insistência.
Há um mote para esta postura: religião e política não se discutem. E ainda que se mascare esta mensagem de respeito pela diferença com a estratégia de evitar divergências conflituosas, ou, deus nos valha, confrontos mais acalorados, há também um travo de desresponsabilização destes temas. Como se fossem demasiado grotescos, ou pior, feitos para não serem compreendidos pelas pessoas de paz. Sim, há também medo. Medo de causarem reflexão, crítica ou, o maior dos males, a mudança de posição.

Hoje, vou debruçar-me no tópico da religião, ainda que não se consiga sacudir, de todo, a política que o envolve. A religião, nos tempos que correm, não é vista, nem pelos média nem pela minha avó, como uma questão pacífica ou até apaziguadora.

Sem ir buscar referências muitos rebuscadas, dizer que a religião e o conflito têm uma relação promíscua nas sociedades actuais, chega a ser um lugar-comum. Portanto, o medo de posições religiosas vem daqui. Será uma tendência justificada pela estatística? Talvez as referências aos grupos religiosos e a linguagem mais violenta tenham de facto, lugar nos números. Mas arredar esta questão para uma vestimenta quase tabu, que não se fale, que não se discuta, é dizer, a bem da verdade, que fingir que não existe ou ignorar a sua presença é funcional, ou realista. E isto, também se tem uma ideia que não funciona bem, a longo prazo pelo menos. Arthur Schneier (2002), rabi judeu, defende que a religião nunca é a causa real de um conflito entre sociedades, mas sim identificada e usada frequentemente como desculpa pelas outras causas como a etnicidade, as disparidades económicas e as diferenças regionais. E chegámos à pedra toque desta ideia: a reacção à diferença.

É verdade que temos sociedades diversificadas: multi-culturais, multi-étnicas, multi-religiosas, multi-géneros. Sabemos isto e basta ver as pessoas à nossa volta, ou ouvir as rádios que povoam a nossa antena, ou até ler as instruções em várias línguas dos produtos que compramos. Eu gosto desta ideia da diversidade, mas a ela já voltaremos.

As identidades religiosas na nossa sociedade são diversas. A nossa consciência e necessidade de sensibilização, em vez de temor, a elas é cada vez mais urgente. E assim, nasce a importância de se FALAR, DISCUTIR e sobretudo OUVIR o tema da religião. Do “é a falar que a gente se entende” até uma real abertura, com menos desconfiança e menos arrogância, na conversa sobre religião, ainda há todo um oceano de passos e peregrinações a fazer. Mas o princípio da necessidade tem de contaminar as consciências sociais e cívicas. Esta necessidade não se manifesta em proselitismo, ou paródia, ou desprezo entre tradições. Esta é uma necessidade de conversação: sentar ao lado, ouvir, perguntar de forma respeitadora e interessada se interesse houver, partilhar não de uma forma impositiva as visões de cada um, e sobretudo esforçar por conhecer um lado que não se conhece mas que pode ser surpreendente. A beleza da diversidade é a sua riqueza. E esta riqueza de diferenças é precisamente uma força na qual as sociedades actuais precisam de participar.

A minha visão sobre a religião é esta. Podia limitar-me a descrever os meus ritos, os meus conceitos religiosos, as minhas convicções e crenças, mas essa dimensão da experiência religiosa (ainda que mereça toda a atenção) é apenas parte da minha identidade religiosa. Eu acredito que o que me toca, harmoniza e me põe em sintonia com as forças que adoro é uma parte absolutamente bela, mas não me chegaria nunca se esgotasse a minha experiência religiosa. Tem de fazer sentido para mim, sem dúvida, mas também tem de fazer sentido para transformar a minha relação e experiências com os outros à minha volta.

Quando comecei a viagem de descobrir o que é religião e o que nesse universo fantástico vive, adoptei uma postura que validasse toda a tradição religiosa possível e imaginária se: aspirassem na pessoa ser uma melhor pessoa e levasse a pessoa a tratar melhor os outros à sua volta. Descobrir mundos de crenças que reconfortem a nossa existência e que nos desafiem a sermos mais e melhor é descobrir o potencial único da religião.

Como religiosa, acredito que o meu caminho passa por despertar este lado da religião nas pessoas que me rodeiam. Gosto de discutir, abrir ao diálogo, ouvir posições que me enriqueçam e me espantem (tendência contínua). Como pagã, sei que esta riqueza desperta força. Força para acreditar na equidade, na tolerância, na responsabilidade e no lugar do divino. A diferença abre-nos os olhos a mundos novos, a equidade e a tolerância ensinam-nos a dar-lhes valor, a responsabilidade lembra-nos do lugar que todos partilhamos e da nossa necessidade comum na diferença: contacto com o divino. Como pagã acredito que estas características fazem de nós pessoas melhores. Em especial a valorização da diversidade, não fosse eu politeísta.

E hoje, por ser o dia que é, lembro com carinho esse grande bastião da minha religiosidade, que sem saber que procurava quando encontrei percebi o quão me fazia falta: o sagrado feminino. A ele também voltaremos. Por ora, a todas as mulheres, diversas, maravilhosas, rabugentas e generosas, desejo um dia de lembrança a todas as que deram as vidas para que pudéssemos estar onde estamos agora. Um bem hajam a elas*



*Imagens tiradas da Internet
Referências:
Smock, D. R. (Editor) (2002). Interfaith Dialogue and Peacebuilding. Washington, DC: United States Institute of Peace Press